Cidadãos que mataram "Caleb" podem ser condenados a 25 anos de cadeia – "devedora" não pode ser condenada por mais de 8 anos
Sabias que se alguém for cobrar uma dívida e o devedor simular que se trata de um bandido que estava a roubar, para que os vizinhos espancassem o cobrador até à morte, todos os envolvidos devem ser punidos com pena de prisão?
Na semana passada, tivemos conhecimento, por via das redes sociais, de um episódio triste que terminou com a morte de um jovem que foi cobrar uma dívida à uma adolescente que se recusava em pagá-la, razão pela qual, o cobrador, por acção directa, decidiu reter o telefone da adolescente como garantia de que a mesma iria entregar os valores.
No entanto, segundo os relatos colhidos das redes sociais, que, a partida, não podemos confirmar a sua veracidade, pelo que, vamos tratar deste caso como uma hipótese a ser analisada, naquele momento, a adolescente, sabendo que não se tratava de um assalto, de má fé, gritou e chamou os seus familiares e vizinhos, alegando que estava a ser assaltada, tratando o cobrador como sendo um gatuno, acção que motivou os cidadãos a espancarem o jovem até à morte.
Reiteramos que não dominamos os factos reais, porquanto, se esta hipótese for verdadeira, estaremos diante do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos da tipicidade formal e material, por existir a subsunção formal do crime de homicídio qualificado em razão dos meios, nos termos do artigo 148º do Código Penal, por terem praticado actos de crueldade ou tortura e por ter sido praticado por mais de duas pessoas, factos que podem ser punidos com a pena de prisão de 20 a 25 anos.
No entanto, se os autores do crime hediondo conseguirem provar que não pretendiam matar, mas sim, agredi-lo fisicamente, por julgarem que se justificava tal acção por legítima defesa de terceiro, logo, o tipo legal de crime já não é o homicídio qualificado em razão dos meios, mas sim, Ofensas graves à integridade física, agravada pelo resultado, por ter um desfecho com a produção da morte da vítima, punível nos termos da alíne b), do número 1º, do artigo 161º do CP, com a pena de Prisão de 3 a 12 anos, por se ter preenchido os elementos constitutivos do n.º 1 do artigo 160.º, devendo ser agravado de um quarto nos seus limites mínimo e máximo por se ter verificado algumas das circunstâncias previstas nos artigos 148.º, sobre homicídio qualificado em razão dos meios, nomeadamente, actos de crueldade ou tortura e por ter sido praticado por mais de duas pessoas.
Segundo este hipotético caso, são autores do crime, nos termos do artigo 24º do código penal, a adolescente devedora, por ter executado o facto, utilizando como instrumento outras pessoas, bem como todos aqueles que participaram directamente da sua execução.
E se a adolescente devedora alegar que não queria o resultado morte, mas, somente, resgatar o seu telefone? Para a adolescente devedora, apresentamos a seguinte análise: 1) Dentro da tipicidade, para além da subsunção formal do crime de homicídio qualificado em razão dos meios, preenche-se igualmente o crime previsto no artigo 301.º do CP, sobre o Alarme causado pela ameaça de prática de crime e abuso de sinal de alarme ou de pedido de auxílio, atendendo que, no seu número 2º, dispões que, quem pedir, por qualquer outro modo, auxílio alheio, simulando, por qualquer outro meio, que o auxílio é preciso, em virtude de acidente, perigo ou situação de necessidade colectivos, inexistentes, é punido com a pena de prisão até 2 anos ou com a de multa até 240 dias. 2)
Ainda, dentro da tipicidade, há o nexo de causalidade entre a acção praticada pela adolescente devedora e o resultado alcançado, visto que, por dolo eventual, nos termos do artigo 12º do CP, ela representou a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, actuou conformando-se com aquela realização, ou melhor, quando clamou por ajuda, gritando que estava a ser roubada, tinha a consciência que tal conduta faria com que os seus vizinhos e familiares abordariam o suposto gatuno, com as consequência possíveis de tal acto, que, como é sobejamente conhecido, culmina com a realização de justiça por mãos próprias, podendo chegar ao extremo de se pôr fim à vida do suposto autor do crime. 3)
Em relação ao carácter indiciário da ilicitude, a jovem poderia alegar que estava a ser vítima de um roubo, por não ter entregue o seu telefone voluntariamente, facto que poderia justificar a ilicitude, por via da aplicação do instituto de legítima defesa. Contudo, dentro os vários princípios que norteiam o direito penal, um deles é o princípio da subsidiariedade, ou melhor, o direito penal aparece sempre como a último rácio, sobretudo, quando os outros ramos do direito ainda possam exercer a sua tutela jurídica.
O que se pretende dizer com isso?
Havendo uma dívida, a relação jurídica entre as parte ainda é tutelada pelo direito civil, em respeito ao princípio da fragmentariedade penal.
Logo, deve-se esgotar os institutos do direito civil, antes de se apelar a intervenção do direito penal. Nesta conformidade, segundo os relatos nas redes sociais, não nos esquecendo que estamos a analisar este facto com base na hipótese de a mesma ser verídica, o jovem que foi cobrar a dívida podia fazer a apelação do exercício e tutela dos seus direitos estatuídos no artigo 336 do Código Civil, fazendo recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito de reaver o seu dinheiro, quando a acção directa for indispensável, apropriando-se, naquela circunstância, do telefone da adolescente devedora, como uma garantia de que a mesma pague a sua dívida, em troca da restituição do bem provisoriamente apropriado.
Ainda que houvesse, da parte do jovem que foi cobrar a dívida, a suposição errónea dos pressupostos que justificassem a acção directa, ainda estaria no âmbito do direito civil, porquanto poderia indemnizar, naquele caso, a adolescente, nos termos do artigo 338º do Código Civil.
Portanto, foi precipitado avocar os institutos do direito penal, visto que o conflito ainda estava a ser solucionado em sede de direito civil.
No entanto, ainda que os pressupostos do instituto da legítima defesa penal estivessem reunidos, nos termos do artigo 31º do Código Penal, a mesma serviria para repelir uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
Aqui, não se pode confundir a expressão repelir com matar. Repelir significa afastar, e não, matar ou linchar. Logo, ainda que estivessem reunidos os pressupostos para a legítima defesa, naquela circunstância, podemos concluir que, caso fosse admissível pelo juiz, houve excesso de legítima defesa, tornando o facto ilícito, mas a pena poderia ser especialmente atenuada, nos termos do nº 2, do artigo 31º do CP, conjugado com o artigo 74º do código penal. 4)
Assim, não havendo excludentes da tipicidade e da ilicitude, deve-se analisar o último elemento do crime, nomeadamente, a culpabilidade.
Segundo os relatos nas redes sociais, a adolescente tem 17 anos de idade, pelo que, já é imputável penal, ou melhor já é passível de responsabilização criminal, nos termos do artigo 17º do código penal, apesar de a penalidade a ela aplicada ser reduzida em dois terços, atendendo que é a regra estabelecida para os menores com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos, à data do facto, não podendo, em caso algum, a pena de privação da liberdade ser fixada em medida superior a 8 anos, ou melhor, os menores imputáveis, com idade compreendidas entre os 16 e 18 anos, nunca lhes pode ser aplicados pena superior a 8 anos de prisão.
Portanto, não sendo inimputável em razão da idade ou de anomalia psíquica, não havendo a falta da consciência da ilicitude e não tendo sido coagida moralmente por inexigibilidade de conduta diversa, aquela menor deve ser responsabilizada criminalmente, desde que a pena a ela aplicada nunca ultrapasse 8 anos de prisão.
Em relação aos vizinhos e outros intervenientes no processo, ou melhor, todos aqueles que agrediram o jovem até à morte, serão responsabilizados criminalmente, da seguinte forma: 1) Se conseguirem provar diante do juiz que agiram daquela forma porque julgaram erroneamente que se tratava de um gatuno, o facto seria analisado diante de uma descriminante de putatividade, por erro sobre as circunstâncias do facto, previsto no artigo 14º, que poderia ser evitável, por ser inescusável, pelo que, seriam punidos, no mínimo, por negligência, nos termos dos artigos 11.º e 13.º, conjugado com o artigo 152.º do CP, por Homicídio negligente grosseiro, com a pena de prisão de 1 a 5 anos. 2)
Se os demais intervenientes do crime não conseguissem justificar a excludente de ilicitude ou se o juiz da causa não aceitasse a causa de justificação putativa, resultante da descriminante de putatividade de erro sobre a circunstância do facto, então, os agentes do crime seriam responsabilizados por homicídio qualificado em razão dos meios ou ofensas à integridade física que resultou em morte, conforme já referimos acima.
Texto: Comissário Waldemar Paulo da Silva José; Docente universitário das disciplinas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Informático e Legislação e Documentação Profissional.