Infiltrados’ sob o disfarce de Juízes e Procuradores ‘corrompem’ o poder judicial em Angola
Com base na actual situação vigente no sistema de justiça angolano, tema de diversas análises e de acesas discussões em meios da sociedade, especialistas do sector são de opinião que “o maior perigo no poder judicial/judiciário não são os conflitos a dirimir, mas os ‘infiltrados’, que sob o disfarce de Juízes e Procuradores assaltam o poder”.
Por: Alves Pereira
A crise no sistema de justiça nacional, apesar de opiniões divergentes, tomou proporções altamente escandalosas. As denúncias que têm vindo a público, de um tempo a esta parte, mas que nunca foram tidas em conta, juntando-se às revelações dos últimos dias sobre acontecimentos nos tribunais Supremo e de Contas, alegadamente protagonizados pelos seus presidentes, Joel Leonardo e Exalgina Gambôa, respectivamente, aumenta o descrédito de que tem sido alvo o sistema judicial e a crença de que é corrupto, “amarrado” ao poder político e dependente de “ordens superiores”.
Embora o Presidente da República, João Lourenço, tenha descartado que haja uma “crise institucional” no país derivado do problema que envolve os referidos magistrados, ante as evidências apontadas e por tudo quanto tem sido descrito, assim como por experiências anteriores com acontecimentos similares, a opinião pública chama a atenção para não se tentar “tapar o sol com uma peneira”.
Segundo o Chefe de Estado, não há no país uma crise institucional. “No país não. Uma crise institucional no país é muito forte dizer isso. Forte demais”, afirmou.
Entretanto, há que ter em conta que os problemas no sistema de justiça angolano são reiterantes, por diversos motivos e que são do conhecimento público.
O constitucionalista e professor universitário Raul Araújo tem por diversas vezes defendido a reforma do sistema judiciário no país, processo que se diz em curso, mas que demora em ser concluído.
Para o académico, é imperioso que “o referido processo conheça, o mais rápido possível a sua conclusão no sentido de se lançar as premissas da defesa da dignidade da pessoa humana, através da protecção dos direitos fundamentais do cidadão”.
A aplicação de um maior dinamismo na sua implementação, para que os cidadãos sintam os resultados da reorganização dos tribunais e dos demais órgãos de administração da Justiça, na visão do constitucionalista, é indispensável.
Raúl Araújo, ao longo dos anos tem advertido que o modelo de funcionamento do sistema de justiça angolano apresenta algumas dificuldades, do ponto de vista legal, para fazer prevalecer os princípios constitucionais, ao basear-se ainda em muitas leis desajustadas à Constituição da República, bem como da actual realidade do país.
Apesar do processo de reforma do sistema judiciário ser essencial, “é igualmente fundamental a mudança de mentalidade, através da aposta numa maior consciencialização de quem executa as leis e dos próprios cidadãos”, considera o jurista.
Diante dos últimos acontecimentos, que envolvem a demissionária presidente do Tribunal de Contas, Exalgina Gambôa, alvo de um processo-crime na PGR e de Joel Leonardo, presidente do Tribunal Supremo, as fragilidades do sistema saltam à vista.
A discordância entre vários juízes tornou-se patente, vários têm-se demitido por razões óbvias, os atrasos e falta de decisão também, e a fundamentação discutível de muitos acórdãos tem sido anotada por muitos comentadores.
“O desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade”, alegam especialistas.
“Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual”, advertem.
Em seu entender, iniciando o país, simultaneamente, “uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado”, afirmam, aconselhando que, “não se afigurando possível pensar, neste momento, numa revisão constitucional, qualquer reforma deve ser feita no quadro da constituição em vigor”.
PR reconhece que há problemas nos tribunais
Apesar de contradizer a opinião pública em relação à “crise institucional”, ao não ter presidido o acto solene que, regra geral, assinala o arranque do ano judicial, que arrancou quarta-feira (01.03), o Presidente da República reconheceu que preferiu não fazê-lo, “atendendo aos últimos acontecimentos, nomeadamente, num dos tribunais.
Enquanto este assunto não ficar resolvido, eu não devia presidir a esta sessão solene de abertura do ano judicial. Portanto, estou-me a referir concretamente ao que se passa no Tribunal de Contas”, acrescentando que, “com relação ao Tribunal Supremo, eu devo dizer que, do que é do meu conhecimento, há alegações de eventuais crimes mas que, por enquanto, nada prova o envolvimento, até agora, do venerando juiz presidente do mesmo tribunal”.
Em suma, há situações graves que grassam no seio do sistema de justiça em Angola.
Os próprios juízes e procuradores, em várias ocasiões, se têm manifestado publicamente, principalmente em Luanda, para denunciar as condições actuais da justiça que, no seu entender, não permitem o melhor desempenho das suas funções.
Ainda de acordo com os especialistas já citados, “a corrupção na magistratura angolana é um fenómeno pouco estudado, mas muito falado”
Citando um curto inquérito fechado levado a cabo pelo CEDESA, em relação à corrupção na magistratura angolana entre operadores judiciais, o mesmo permitiu chegar à conclusão que a maioria acredita que os juízes deixam-se influenciar por razões monetárias ou políticas e, nesse sentido, muitas das decisões são tomadas com base nessas influências, não tendo em conta o direito aplicável.
Existiram mesmo referências por parte de magistrados de tentativas variadas de ofertas de presentes ou quantias monetárias.
O referido inquérito não teve uma amostra suficientemente alargada para permitir retirar conclusões científicas, porém, deu uma impressão das opiniões existentes entre advogados, magistrados e funcionários judiciais.
Igualmente, outra vertente do assunto está ligada à questão da politização dos tribunais angolanos.
Para os especialistas, “não existe dia que não surja uma opinião publicada, geralmente ligada à oposição, indicando a falta de credibilidade, sobretudo, dos tribunais superiores, entre estes o Tribunal Constitucional, devido à sua politização”.
Tem sido muito badalada a questão da filiação partidária dos juízes e o facto de, directa ou indirectamente, a larga maioria dos juízes ainda depender da nomeação do Presidente da República ou do partido maioritário na Assembleia Nacional, como é o caso do Tribunal Constitucional.
A Constituição determina que quatro juízes em onze são designados pelo Presidente da República e outros quatro por uma maioria de 2/3 na Assembleia Nacional, que o MPLA tem detido desde sempre.
Nessa medida, pelo menos 8 dos 11 juízes estariam alinhados com o poder político.
Já quanto ao Tribunal Supremo, o presidente e vice-presidente são nomeados pelo Presidente da República de entre 3 candidatos seleccionados por 2/3 dos juízes conselheiros em efectividade de funções.
Assim sendo, devido a estes vários factores “tem crescido em alguma opinião pública o sentimento da dependência do poder judicial face ao poder político, servindo para variados ataques deslegitimadores das decisões judiciais”.
Mudança urgente de paradigma
A primeira prioridade de uma reforma do sistema judicial é a mudança do paradigma legal, ou dito de outro modo, a modificação da mentalidade jurídica e dos padrões utilizados.
Os especialistas defendem que “a excessiva cópia dos modelos, normas, doutrinas e professores portugueses é perniciosa para Angola, pois não dota a cultura jurídica do país de instrumentos e formas de pensar adequados aos desafios concretos em que está envolvido”.
Deste modo, os citados expert’s aconselham a que se vá buscar novas inspirações em outras paragens. “Uma investigação alargada deveria ser realizada em relação a casos de estabilidade e/ou sucesso na própria África, como é o caso da Namíbia e, sobretudo, do Botsuana. Parece ter lógica jurídica verificar o tipo de princípios e normas, bem como de organização judicial adoptado no Botsuana e adaptar aquilo que se entenda para Angola.
Outra ordem jurídica que poderia ser explorada de forma mais profunda, designadamente no que diz respeito à organização judiciária e processual, bem como ao direito criminal, é o Brasil, especialmente, na perspectiva do combate à corrupção e dos vários instrumentos normativos que tem ‘importado’ do direito norte-americano”.
Em relação ao combate à corrupção, o sistema jurídico angolano tem de se “americanizar”, investindo no direito premial, na delação premiada, nos acordos de sentença, e nas polícias específicas, referem, recomendando que, “a fim de acelerar a mudança de paradigma ao nível dos juízes, estes deveriam passar a contar com assessores especializados que estudem e preparem as decisões de acordo com o novo paradigma legal”.
“Uma sugestão seria instituir uma comissão de reforma do direito não apenas contendo as luminárias angolanas assessoradas por portugueses, como acontece agora, mas admitindo contributos multinacionais. Assim, a comissão de reforma do direito deveria conter especialistas angolanos e portugueses, mas também do Botsuana, Namíbia, Brasil e se possível dos Estados Unidos da América e Grã-Bretanha. O mais importante de tudo é haver uma renovação da pluralidade de contributos e de fontes meta-legais para o direito angolano”.
Por outro lado, sugere-se “a criação de um instituto autónomo e com gestão transparente da administração da justiça, que geriria as receitas orçamentais, as receitas do combate contra a corrupção e poderia ter receitas próprias ligadas às actividades da justiça.
Este instituto teria gestores profissionais e seria auditado por uma empresa internacional de auditoria. O seu funcionamento seria descentralizado com um gestor adstrito a cada tribunal de comarca e tribunal superior”.
“Haveria assim, a par do reforço de verbas, uma autonomização da gestão dos dinheiros da justiça que seriam administrados por um instituto com gestores profissionais, constituído para o efeito e que funcionaria de forma descentralizada em cada tribunal”.