“Os empresários não estavam preparados para ter uma inspecção daquele nível”, Diógenes de Oliveira, antigo Director do INADEC e 1º Inspector-Geral da ANIESA
Antigo director do INADEC evita fugir a responder a algumas questões, mas não hesita, ele próprio, em lançar perguntas. Entre elas, questiona a utilidade de duas instituições que têm o mesmo perfil e fazem a mesma coisa. Por isso, Diógenes de Oliveira defende a fusão da ANIESA com o INADEC. Confessa sentir que deixou a ANIESA sem cumprir a sua missão.
Sente que conseguiu fazer aquilo a que se propôs quando foi convidado para estas instituições públicas?
Ao longo da minha trajectória, sinto que a minha missão não foi cumprida por completo. Isso é um trabalho que leva o seu tempo e não tive tempo para implementar políticas que pudessem defender os direitos do consumidor na sua plenitude.
O que faltou?
Primeiro, temos de perceber que a defesa dos direitos do consumidor é inalienável, é como o direito à vida que está previsto na constituição. Se percebermos profundamente o que é o direito de um consumidor, veremos que é o direito de todo e qualquer ser humano e não estamos a falar somente do que comemos ou bebemos. Estamos a falar do direito do consumidor na sua plenitude e está presente na saúde, educação, bens duradouros e não duradouros, peças, restauração, hotelaria. O direito do consumidor é um mundo vasto e depende primeiro da intelectualidade e do conhecimento de cada consumidor. Depende de nós, porque até aqueles que são prestadores de serviços ou comerciantes no fim da cadeia também são consumidores de um determinado serviço ou produto.
Se tivesse a oportunidade de ficar na ANIESA por mais ano e meio, o que faria?
Começo pelo INADEC - Instituto Nacional de Defesa do Consumidor, que tem a prerrogativa de fiscalizar. A ANIESA é uma autoridade que defende os direitos do consumidor. O fim da ANIESA é o de inspeccionar e existe uma diferença entre inspecção e fiscalização. Quem fiscaliza não tem o poder de sancionar e quem inspecciona tem esse poder, o INADEC serve mais para educar, formar e criar políticas em torno da defesa dos direitos do consumidor. Ali, podíamos fazer muito mais: educar o consumidor em todas as vertentes, porque somos todos consumidores.
A educação é virada directamente para os consumidores de tenra idade, começando nas crianças até à fase adulta. O consumo começa quando nascemos sob responsabilidade dos progenitores, mas quando esta criança atinge a maioridade terá a responsabilidade de salvaguardar e exigir os seus direitos enquanto consumidor. Há a necessidade de, em primeiro lugar, educar. Seja na escola, seminários, palestras ou nos média. A ANIESA é um órgão inspectivo, inspecciona os hábitos e práticas dos comerciantes. Tem o poder coercitivo embora isso não queira dizer que não tenha a responsabilidade social de educar e formar os consumidores e comerciantes.
O que se podia fazer mais na ANIESA?
Primeiro, olhar para a vertente recursos humanos, se estamos a falar de 38 milhões de Angolanos, a ANIESA não pode ter um corpo de efectivos que comporta 120 inspectores, segundo a remuneração, temos de perceber que a segurança alimentar faz parte da segurança de um Estado. Somos aquilo que consumimos e quem inspecciona um serviço ou produto se está em conformidade, são os inspectores. Devemos para a vertente homem, recursos humanos, na salvaguarda dos direitos socias de quem trabalha dia e noite, de segunda a segunda, para tomar conta e salvaguardar aquilo que consumimos.
Em número de inspectores, qual e o que considera ser necessário?
Podia deixar um número, mas não estou na ANIESA há um ano. Considerando o período em que lá estive, para minimizar e, olhando para o Decreto Presidencial numero 267, que cria a ANIESA e estabelece que a ANIESA central é composta por, se não estiver errado 74 a 78 inspectores para inspeccionar as grandes superfícies como uma Angomart ou as grandes indústrias, empresas ou distribuidores da linha moderna.
74 inspectores são poucos, mas a ANIESA, no seu estatuto, também tem limitações, porque existe ANIESA municipal, que inspecciona médias e pequenas empresas.
Mesmo tendo 300 ou 400 inspectores para este fim, ainda é muito pouco. Depois, devemos olhar que estes inspectores de carreira, estão acima dos 40 anos e há a necessidade de começarmos a olhar para uma inspecção do futuro e isso passa por formar jovens para dar continuidade ao trabalho.
É pratica recorrente de alguns comerciantes que quando a inspecção está, de facto intensivamente a fazer o seu trabalho, evacuarem determinados produtos para rota de Luanda.
A inspecção de hoje não é mais aquela que eu chamo de “inspecção arcaica”. O “modus operandi” dos comerciantes e fornecedores é outro. Hoje, já há ciência para, de facto, culpabilizar e criminalizar um determinado infractor e para isso tem de se criar provas. Ainda olhamos para a inspecção como data de caducidade, falsificação da data. Onde estão os outros aspectos que a inspecção tem a responsabilidade de fazer? Por exemplo: há necessidade de laboratórios. O Executivo está a trabalhar, de todas as formas possíveis, para que seja um facto a produção nacional, mas a realidade é que ainda 70% dos produtos que consumimos, sem falar dos serviços, é importado. Como vamos aferir ou ter a certeza de que um determinado vinho importado é exactamente o que o rótulo nos diz? Será que temos laboratórios para isso? Não!
Como vamos fazer inspecção e não falo apenas de importados, mesmo de produtos nacionais, porque hoje, já usamos químicos para tratar os nossos campos agrícolas e isso requer laboratórios?
Há adubos e fertilizantes que precisam de um determinado rigor e isso passa por um laboratório para que o produto, antes de chegar ao consumidor final, esteja apto para o consumo. Será que temos pessoas capacitadas em física, química e biologia para saberem ph, a quantidade de amónio, de fósforo e todos esses aspectos?
Todos esses são factores para a melhoria da qualidade dos produtos que o consumidor recebe.
Levou estas preocupações a quem de direito?
O nosso trabalho foi feito. Fizemo-lo com muita responsabilidade, com muito rigor e lisura. Claro que levamos as preocupações a quem de direito, propusemos, chamamos à razão. Não tenho certeza se quem lá está agora esteja a dar continuidade ao projecto. Mas o que posso garantir, com muita certeza, é que há necessidade de respeitarmos esses aspectos. Se não o fizermos, mesmo que amanhã mudemos o quadro e passemos a viver com 70% de produção nacional e 30% de importação, não teremos capacidade para aferir a qualidade dos serviços e dos produtos.
Como é feita a inspecção nos hotéis, pensões e casas de acomodação? Será que existem equipamentos adequados para aferir se aquele colchão e aquela almofada estão em condições para o consumidor poder usufruí-los? Em quanto tempo se deve trocar os colchões nas casas de acomodação, pensões e hotéis? Sabemos que é possível e existe a transmissão de várias doenças através do suor e da saliva. Como é feita a inspecção adequada nesses estabelecimentos? Será que temos técnicos capazes? Se temos, quantos são? Estamos a pensar no futuro?
O que eu estou aqui a dizer é pensar no futuro.
Como vamos aferir ou ter a certeza de que um determinado vinho importado é exactamente o que o rótulo nos diz? Será que temos laboratórios para isso? Não!
Resolver a falta de laboratórios no país é para ontem ou para o futuro?
Os laboratórios deviam ser para ontem e não para amanhã. Existem produtos que entram por via terrestre vindos da Namíbia, África do Sul e Zâmbia. Temos laboratórios lá para aferir se esses produtos e a matéria-prima estão em condições? Não estamos a falar apenas de produtos que ingerimos, mas também de adubo.
Vamos supor que exista um agricultor que venha comprar adubo para fertilizar a sua terra.
Qual é a qualidade desse adubo? Será que a qualidade do fertilizante é mais adequada? Os solos são diferentes, a temperatura varia de região para região. Todos esses aspectos são de responsabilidade da inspecção que garante não só a segurança alimentar como económica, porque os direitos do consumidor são o garante da economia.
Isto é um círculo, quando se tem mais consumo, há mais dinheiro, mais receitas e mais gastos.
Os selos fiscais, que agora são obrigatórios nas bebidas e cigarros, resolvem, em parte, preocupações ligadas à conservação do produto?
Resolvem. Esta foi uma proposta estudada na altura em que eu era presidente da AADIC e lembro-me que foi um trabalho que propusemos, principalmente, para aqueles produtos de fácil adulteração e falsificação como são as bebidas e tabaco.
Principalmente as bebidas, porque vivíamos um momento marcado por muita falsificação de bebidas alcoólicas, água e sumos e, na altura, propusemos a necessidade de existir um selo de segurança para que quem tivesse de vender ou quem tivesse a responsabilidade de fiscalizar soubesse se aquele produto é credível ou não para o consumo humano.
Enquanto esteve na ANIESA e mesmo no INADEC encontrou produtos que o levaram a colocar as mãos à cabeça e concluir que a situação é grave?
Em várias situações e são de conhecimento público. Enquanto Inspector-geral da ANIESA, nas nossas instalações tínhamos o Ministério Público, colaborámos directamente com o SIC e o DIIP uma força adstrita ao Comando Geral da Polícia Nacional e, na altura, fizemos trabalhos que terminaram em detenções de vários indivíduos por práticas menos abonatórias e que comprometiam gravemente a saúde do povo angolano: produtos expirados, mal-acondicionados, adulterados.
Não tivemos contemplações, não tivemos meias medidas em encerrar estabelecimentos comerciais como uma medida cautelar para não continuar a cometer as mesmas infracções e, a posteriori, a detenção por parte do SIC e seguir para o Ministério Público. A isso? Não!
As penalizações processuais não são muito brandas? Não se devia tratar de forma diferente esses casos?
As leis têm a sua modalidade própria, quem as institui é a Assembleia Nacional e têm os seus procedimentos. Enquanto inspector da ANIESA, tinha a prerrogativa de fazer cumprir a lei que era colocada à disposição.
O Código Penal vigente já criminaliza a violação dos direitos do consumidor, mas ainda é muito brando. A pena para a violação dos direitos do consumidor, principalmente, vinda de quem tem consciência de que os produtos que está a colocar no mercado, vão causar um dano maior, que vai ceifar a vida de vários cidadãos angolanos e não só, devia ser mais dura. Uma coisa é um determinado indivíduo ou empresário que não tem conhecimento da sua prática e, por algum desconhecimento qualquer, tem o produto a ser comercializado.
Outra coisa é o empresário que, de forma dolosa, premeditada e calculista, coloca os produtos no mercado sabendo que aquilo vai causar problemas à saúde humana. O próprio empresário quando encontra uma inspecção fragilizada e uma lei que pode contornar em alguns aspectos sente-se à vontade.
A nossa inspecção é fraca?
Não diria que é fraca. Existem bons mecanismos, mas há necessidade de começarmos a apostar mais na inspecção, capacitar mais os técnicos e olhar para um futuro próximo que passa pela formação de novos inspectores e vermos que a inspecção não é somente data de caducidade e falsificação de rótulos.
Temos de ter pessoas formadas em física, química, biologia, ambiente, medicina, vários juristas. Hoje, a inspecção não é olhar para o rótulo, para a falsificação ou adulteração de um determinado produto.
Como vamos conseguir, automaticamente, aferir se uma peça de um determinado automóvel tem qualidade ou não?
Alguma vez se deparou, ou teve conhecimento, de empresas que são representantes oficiais de determinadas marcas serem elas próprias a importarem e ou venderem produtos adulterados ou em mau estado de conservação?
Sim, não vou trazer a baila ou citar aqui o nome das empresas, mas já chegámos ao ponto de encontrar óleo de reposição para viaturas caducadas, expirados. Chegámos a encontrar peças que, de facto, teriam de estar em melhor sítio, em melhor lugar, acondicionadas para melhor preservação.
Já encontrámos situações chocantes e que comprometiam gravemente o direito do consumidor. É prática recorrente de alguns comerciantes que quando a inspecção está, de facto, intensivamente a fazer o seu trabalho, evacuar e determinados produtos para fora de Luanda. Os recursos humanos são poucos para acudir a estas situações.
A sua exoneração aconteceu algum tempo depois de criticar o encerramento de armazéns em Luanda pelo Governo Provincial, num âmbito do programa de reordenamento do comércio o que levou a que se associasse a exoneração às suas críticas...
Eu diria que é especulação. São situações daqueles sujeitos. A minha exoneração foi a meu pedido. Não foi uma exoneração por força de uma força qualquer, por interesses, não. Da mesma forma como entrei por um convite para ocupar determinado lugar. O exercício público tem o seu prazo e todos somos cidadãos angolanos que temos o compromisso de dar o nosso melhor. Naquele momento, exerci o meu melhor.
Senti que já tinha feito o mínimo e deixei para que os outros pudessem continuar a tarefa.
Mas, pediu para sair porque estava sem tempo, estava ocupado ou sentia-se incapaz de dar continuidade aos desafios?
Saí por razões pessoais, que prefiro não invocar agora, talvez numa altura que for conveniente, mas o que quero deixar muito bem presente é que saí por vontade própria.
Depois do surgimento da ANIESA, sentiu-se alguma letargia no INADEC algumas pessoas defendiam que as duas lideranças, tanto de uma como da outra, não perceberam bem a forma como iam dividir o mercado. Há mesmo quem defenda a extinção do INADEC...
Não sou a pessoa capacitada para dar uma resposta concreta sobre este caso. Temos de desassociar as responsabilidades do INADEC com a ANIESA. Cada um tem o seu objecto social. O INADEC defende o consumidor com políticas, formações, pedagogia, incentivos para poder alavancar os direitos do consumidor em toda plenitude.
A ANIESA tem também o seu objecto social que não pode, em momento algum, colidir com o objecto social, tanto de uma ou de outra.
Não sentiu esta colisão enquanto Inspector-Geral da ANIESA?
A princípio, houve alguns mal entendidos, talvez de algumas pessoas que faziam resistência na interpretação da própria lei, do próprio decreto presidencial que criou a ANIESA, que é o 267.
E ao mesmo tempo também se fazia alguma má interpretação de qual era o objecto final do INADEC. O INADEC devia passar para a ANIESA. Devia ser transformado em um departamento incorporado na ANIESA, porque o seu objecto social é a defesa dos interesses do consumidor.
E o INADEC também tem, no fim, o interesse e a salvaguarda, da defesa dos consumidores.
Podia minimizar os esforços gastos, meios, uma instituição tem meios próprios, outra instituição também tem meios próprios, o INADEC deveria ser um departamento dentro da ANIESA vocacionado para a defesa do consumidor, na altura houve uma má interpretação de algumas pessoas de má-fé que interpretaram mal as normas e colidiam algumas a faculdade e a responsabilidade e as obrigações de cada instituição e depois ficou ultrapassado e já deve estar tudo sanado.
Qual é a avaliação que faz dos casos de corrupção e ou tentativa de corromper os inspectores da ANIESA?
Quando lá estava as práticas que lesavam o interesse do Estado e, especificamente, os interesses do colectivo, por parte de alguns indivíduos, estes eram responsabilizados de forma administrativa e criminalmente. Isso também é público e acompanhamos alguns inspectores a serem detidos.
A decisão se, de facto eram culpados ou não, não cabia a ANIESA, mas sim aos órgãos de justiça. Neste momento já não consigo precisar como é que está a actuação da ANIESA, já não sei como estão a ser instruídos os processos para a prática do género. Temos de ter o conceito que sempre primei.
Hoje estou de um lado e amanhã estarei do outro. Hoje estou a defender os interesses de 38 milhões de Angolanos que somos nós, enquanto consumidores, amanhã também serei consumidor. Ou seja, também sou consumidor. Tem aquele ditado antigo que diz ``não faça ao outro aquilo que não gostaria que fizessem a si”.
Se tivermos sentido de pátria, sentido de que estamos a fazer hoje, e amanhã vamos colher em dobro.
Acredito que se cada inspector tiver isso em mente, poderemos ter, de facto, uma inspecção com base na lei
Alguma vez foi tentado pessoalmente?
Sou cidadão angolano, tenho amigos, conhecidos e amigos empresários. Mesmo na altura em que era Inspector-geral da ANIESA, não deixei de ter amigos e não deixei de conviver com esses camaradas.
O bom inspector é aquele que, de facto, comunga, vive, conversa e senta na mesma mesa dos infractores, porque tem de conhecer os modos operantes para melhor poder actuar. Isso era uma prática de todos nós.
Temos de estar inseridos para saber como é que está a ser efectuada a actividade de um determinado comerciante e para ver se, de facto, na actividade existem irregularidades que comprometam os direitos do consumidor.
Não fui tentado, todos sabemos que não. E porque até, de facto, o nosso trabalho foi feito com muita lisura, com muita responsabilidade e com sentido de pátria.
Se tivesse de sugerir a revisão do código penal, sobretudo a pena prevista para a violação dos direitos do consumidor, qual seria a sua gestão?
Teria de estudar mais para poder para poder dar uma opinião concreta porque a definição de uma pena pressupõe privação de liberdade. E a privação de liberdade é o ultimo rácio para a punição ou a responsabilização de um determinado sujeito que veio a cometer um crime.
Teria de estudar se o crime que ele cometeu cumpriu com todos os requisitos para que seja imputado um crime ou uma infração.
Temos de olhar se houve premeditação, dolo, ilicitude, todos esses aspectos que assim o conceito penal impõe. Agora, se tivesse de dizer, são 10 anos, com que base? Pode ser pouco.
Vamos supor alguém, de forma dolosa e com premeditação, coloca, no mercado angolano, leite, sabendo que este leite esta contaminado e ceifa mais do que 200 vidas. Qual seria a pena dele? 10 anos seria pouco.
Aceitaria um convite para desempenhar um outro cargo no Governo e até mesmo regressar à ANIESA?
Sou um cidadão e, acima de tudo, patriota, sou muito patriota e velo pelos interesses do colectivo. Qualquer missão, estou pronto para cumprir. A pergunta é se eles estão preparados para me receber.
Antes, não estavam preparados?
A sociedade não estava preparada para me ter lá.
A sociedade, a ANIESA ou o Ministério?
Na altura, a sociedade não estava preparada para ter uma inspecção àquele nível. Se me orientarem, estou pronto para cumprir, mas será que estão preparados para me receberem?
Embora depois acabemos por sermos todos consumidores, há a necessidade de separar figuras.
Quando diz que não estavam preparados, refere-se ao consumidor, ao empresariado ou ao Governo?
Os empresários não estavam preparados para ter uma inspecção àquele nível. Por força de um Decreto Presidencial, criou-se a ANIESA num papel. A ANIESA foi criada de raiz em todos os aspectos por uma equipa liderada pelo doutor Diógenes. Boa equipa.
Fizemos com que a ANIESA tivesse o Ministério Público. Tivemos o acompanhamento do Serviço de Investigação Criminal. Tivemos a Polícia Nacional connosco a acompanhar. O que estou a tentar dizer é que, enquanto estive na ANIESA, a sociedade não estava preparada para ter uma inspecção com esta capacidade toda de atuação.
Enfrentou alguns problemas pela forma como tentou desempenhar a inspecção?
Quem é que gosta de um polícia? Por mais legal, que esteja... Só pensam no polícia quando há problemas.
A primeira palavra quando alguém está encurralado numa situação de risco é “meu Deus, Deus queira que apareça aqui um polícia...”.
Mas ninguém fala bem de um polícia. Quem é que gosta de ser inspeccionado?
Terá sido vítima dos lobbys” do empresariado?
Isso não faz frente à minha ideologia. Não faz frente.
Concorda que temos empresários tão bem organizados e fortes ao ponto de fazerem lobby” para tirarem um polícia que lhes esteja a causar problemas?
Se assim tentaram alguma vez, fazia-me valer pela lei. A lei e a razão, acima de tudo. E com isto fizemos o nosso trabalho da melhor forma possível.
Quais são as grandes manifestações que podem apresentar como exemplo dessa falta de preparação?
Um dos exemplos é a coima que aplicávamos, as nossas multas para aquele comerciante que agia de má-fé eram mesmo salgadas. Abríamos o processo administrativo para quem agia com premeditação, dolo, com todos os aspectos criminais imputados. Além do processo criminal, instruíamos e mandávamos para o SIC, e o SIC, por sua vez, para a PGR. Eram mesmo multas para fazer reflectir se convinha voltar a fazer ou entrar para a legalidade.
E todas eram pagas ou algumas negociadas debaixo da mesa?
Negociadas debaixo da mesa, duvido. Pagas, eram. Atenuadas, dependiam dos fundamentos.
Reduzidas, dependiam dos fundamentos e da situação em concreto.
Em Angola, temos muitas empresas estrangeiras, e com muita experiência tanto pela positiva como pela negativa, que quando optam em cometer, fazem de forma devidamente organizada e quando apanhadas, são brutais atentar corromper no sentido de se livrarem das penalizações... O ser humano é igual independentemente da sua nacionalidade.
Quando era Inspector-geral, não via nacionalidade, via ilegalidade. Podia ser indiano, japonês, seja que nacionalidade fosse, comprometeu a lei, feriu a lei, atropelou os interesses do consumidor, lesou a pátria, era sancionado.
Faço referência aos estrangeiros que, por sinal, dominam a indústria, comércio, etc.
A ANIESA e os inspectores não sentiam a necessidade de estarem bem mais preparados ou atentos quando fossem fazer inspecção em uma destas unidades?
Não. Quando íamos para o terreno, não sabíamos, de facto, se o proprietário é libanês, indiano, angolano, ou de que nacionalidade fosse. O nosso interesse era salvaguardar os interesses da pátria.
Agora, tem alguma particularidade. Nas nossas actuações, posso aqui dizer que dependia muito da actuação dos inspectores ou da inspecção da ANIESA.
A nossa atuação não teve meias medidas. Nós não íamos somente em cantinas, em médias empresas.
Fomos em tudo que se dedicava ao comércio.
Nunca sentiram interferência, telefonemas a dizer, por exemplo, que que precisavam ser menos rígidos para não colocarem em causa os empregos?
Pessoalmente, nunca recebi. Agora, os advogados apelavam neste sentido. É claro que os advogados das empresas apelavam a alguma sensibilidade na multa, argumentavam com a empregabilidade, que a empresa não factura, que são infractores primários.
O nosso gabinete jurídico analisava, ao pormenor, se são residentes, se não residentes, se, de facto, o acto cometido lesou, se houve intenção, aliás, dolo, se houve premeditação, se é uma prática recorrente há alguns anos. Havia vários aspectos que colocávamos por cima da mesa para tomar as devidas decisões.
Existiram muitos registos de empresas que estavam recorrentemente a cometer ilegalidades?
Falando de forma natural, a porrada era tão forte, que fazia pensar por duas vezes se adiantaria recorrer à mesma prática duas vezes. Na altura, em que eu lá estava, ficava por uma única vez.
(Valor Económico)