Acusados de "negociar" solturas: Juízes de garantias não recebem subsídios há mais de um ano
Depois de terem entrado em funções em Maio de 2023, pouco mais de um ano desde a sua entrada em funcionamento, mais de 350 juízes de garantias estão sem ver a cor do dinheiro dos subsídios de 30% sobre os salários de base a que têm direito, deixando em 'xeque' a celeridade processual pela qual foram delegados a fazer com vista a diminuir a cifra de cidadãos detidos sem culpa formada.
Por. Telson Mateus
Quando entraram em funções, em Maio de 2023, após um encontro de 'alto nível' entre os responsáveis de vários órgãos que intervém na justiça angolana, os magistrados judiciais, indicados para exercer a actividade de juízes de garantais, nunca pensaram que o Estado não iria honrar com o compromisso assumido, que seria, o pagamento dos subsídios a que têm direito.
No encontro de concertação com o ministro do Interior, Eugénio Laborinho, o Procurador-Geral da República, Hélder Pita Groz e o bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, Luís Monteiro, naquela altura, o juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, defendeu que os actores processuais precisam estar interligados com a Polícia, o Ministério Público e os tribunais para que possam trabalhar de forma articulada, uma vez que sem os serviços policiais e penitenciários é impossível o andamento dos processos, assim como a intervenção exclusiva dos tribunais, sem o Ministério Público e dos advogados.
Hoje, volvidos 14 meses, os mais de 350 juízes de garantias espalhados por todo o País queixam-se de não estarem a receber o que lhes é devido.
Contas feitas rapidamente pelo NA MIRA DO CRIME apontam para um valor a rondar cerca de um milhão e meio de kwanzas que cada juiz de garantias tem como dívida a receber por um ano de trabalho sem a referida compensação.
Em vários casos, a forma como supostos criminosos são soltos, mesmo com o devido trabalho dos órgãos de polícia, coloca em ‘xeque’ a lisura dos processos, e muitos acusam Juízes de Garantias de serem ‘negociadores de solturas’.
Números não batem certo...
Em finais do mês passado, Joel Leonardo disse, em jeito de balanço, com uma ponta de orgulho e aparente sentimento de dever cumprido, que cerca de 30 mil processos e expedientes judiciais tinham sido resolvidos pelos juízes de garantias durante o ano judicial findo.
Joel Leonardo, que prestou estas declarações durante uma reunião dos titulares dos órgãos que intervêm na Administração da Justiça, não fez referência ao facto de os juízes não estarem a receber os seus subsídios.
O polémico juiz-conselheiro do Supremo, que é igualmente presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), revelou, também, que foram emitidos aproximadamente 17 mil mandados de soltura e 16 mil mandados de condução à cadeia, números que, no entender do responsável, são “positivos”.
Por outro lado, Joel Leonardo defendeu, segunda-feira, em Luanda, que sejam realizadas acções contínuas para que os cidadãos da região austral vejam concretizados o direito de acesso à Justiça.
Enquanto presidente Tribunal Supremo (TS) e do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), fez estas declarações na abertura da 1.ª Conferência do Tribunal Administrativo da Comunidade de desenvolvimento da África Austral (SADC), onde referiu que, além do TS existe em Angola em pleno funcionamento, três tribunais da Relação, 39 de Comarca, sendo que a Corte Suprema (TS) tem 24 juízes conselheiros, entre os quais oito mulheres.
Fez ainda referência aos 69 juízes desembargadores, dos quais 31 mulheres, que exercem funções nos três tribunais da Relação e 680 juízes de Direito (292 mulheres) que funcionam nos tribunais de Comarca.
"Por conseguinte, a nível de toda a jurisdição comum funcionam, no país, 773 magistrados judiciais, que são apoiados por cerca de dois mil funcionários judiciais, para uma população estimada em 35 milhões de habitantes”, realçou.
À primeira vista, estes números podem parecer satisfatórios, mas juristas angolanos ouvidos à respeito colocam em causa a produtividade dos juízes de garantias, que considera “muito baixa”.
Estes juristas, que falaram sob anonimato por razões óbvias, esclareceram que 30 mil processos divididos por 10 meses, que correspondem ao ano judicial, significam que foram despachados 300 processos ou expedientes judiciais por mês.
Nas contas da fonte que temos vindo a citar, 30 mil divididos por 359 magistrados de garantias dão uma média de 83 processos para cada juiz durante o ano.
“Oitenta e três processos em 10 meses significa que cada juiz despachou apenas oito por mês, ou seja, dois processos por semana”, afirma a fonte, que acrescenta: “É um resultado bastante irrisório”.
Em sua opinião, o não-pagamento dos subsídios aos juízes pode estar a contribuir para os baixos índices de produtividade.
Sobre o mesmo assunto, outro jurista considerou que os números avançados “estão muito aquém das expectativas criadas” e que isso pode resultar, em parte, na falta de experiência dos juízes de garantias, por não estarem “familiarizados com este género de processos que requerem decisões céleres”, assim como devido à falta de pagamentos dos subsídios.
Manifestou, por fim, a esperança de que o quadro venha a inverter com o recente enquadramento de mais 180 juízes de direito no mercado do trabalho, mas, para tal, será necessário que o “Estado honre com a sua parte”.
Reacção
Entretanto, o porta-voz do Tribunal Supremo, Leandro Lopes, confirma que os magistrados ainda não receberam os referidos subsídios.
De forma meio irónica, diz haver uma proposta nesse sentido, que aguarda aprovação, garantindo que se trata de subsídios na ordem dos 10%.
De referir que por deliberação da 5.ª Sessão Ordinária do Plenário desse Conselho, em Junho do ano passado estabeleceu-se uma comissão integrada por três vogais, pela directora nacional dos Recursos Humanos e pelo director do Departamento de Gestão Orçamental e do Património, todos desse conselho, que foi incumbida de proceder ao estudo da implementação do subsídio a atribuir aos juízes de garantias e aos oficiais de justiça afectos a esse serviço.
Tal comissão foi criada, por se reputar de direito que tais juízes e os oficiais de justiça beneficiem do referido subsídio, a exemplo do que sucede com os oficiais de justiça adstritos ao Ministério Público junto dos órgãos de investigação e instrução processual.
A referida comissão concluiu o seu trabalho, mas a implementação do subsídio em causa não depende de uma simples deliberação desse conselho, por carecer da intervenção doutros órgãos e poderes do Estado, na medida em que, mesmo que a sua atribuição se venha a fazer por analogia aos outros funcionários que dele já beneficiam, carece de ser estabelecido por lei.
Não havendo, presentemente, lei que habilita o pagamento daquele subsídio, não existe, então, o direito reclamado.