Nota negativa: Negligência médica já deveria ter feito "rolar cabeças" no Ministério da Saúde
Em Angola a ocorrência de casos de negligência médica há muito que deixou de ser novidade. A novidade, no entanto, consiste no facto de, ao longo dos anos, não existir na memória colectiva dos angolanos, o registo de um caso relevante em que os autores destes casos ou o próprio Estado tenham sido exemplarmente responsabilizados por um tribunal pela morte ou sequelas graves de um cidadão. Daí o motivo pelo qual nenhum responsável deste departamento ministerial tenha tomado a decisão de pedir a sua exoneração.
Por: Telson Mateus
Morte de pacientes à porta de hospitais, médicos esquecem compressa ou o bisturi no abdómen de mulher que sofreu cesariana, cidadã vê os membros superiores e inferiores amputados por erro médico, criança recebe transfusão de sangue contaminado com VIH.
Esses são apenas alguns exemplos de casos concretos que chegam ao conhecimento dos angolanos. Alguns destes casos são divulgados por via das redes sociais, outros, devido a denúncia de familiares que
continuam a sentir na pele a inacção do Estado em responsabilizar os responsáveis de actos dessa natureza onde, quando não se perde a vida, as sequelas nos seus parentes próximos são irreparáveis, por conta da má actuação do corpo clinico de uma determinada instituição de saúde ou devido a falta de condições para que os referidos profissionais pudessem prestar um serviço humanizado aos cidadãos.
Números assustadores...
Se por um lado a inexistência de estatísticas da parte do Governo facilita ludibriar a opinião pública pela gravidade do assunto, por outro, a ocorrência de casos um pouco por todo País demonstra a profundidade do problema.
Por exemplo, dados da Inspecção-Geral da Saúde (IGS), do ano de 2024, dão conta que a instituição recebe, todos os meses, entre 50 e 60 denúncias de supostos erros graves, cujas consequências, muitas vezes, são fatais ou deixam sequelas irreversíveis. Esse dado, ppr si só, deveria constituir preocupação para quem giza políticas voltadas a melhoria do atendimento médico e para a tão propalada humanização dos serviços de saúde em Angola.
Só para se ter uma ideia, a IGS admitiu, na altura, que esses números representavam apenas a “ponta do iceberg”, tendo em conta a falta de cultura de denúncia do nosso povo, muitos dos quais, mais a vontade com o espírito de "deixa andar".
Sem revelar quantos processos chegaram a tribunal ou os inquéritos concluídos, o responsável da área, xxxxxx, chegou mesmo a assumir a existência de muitos processos sob investigação, mas que para o descrédito daquele departamento, os angolanos ficam sempre alheios aos seus resultados na prática.
Morte de criança no hospital David Bernardino
Os casos de negligência médica voltaram à baila na semana passada com a morte de mais uma criança a porta do hospital Pediátrico David Bernardino, depois de ter passado horas sem atendimento médico.
Na mesma semana, o Conselho Provincial de Luanda foi à residência de uma jovem prestar solidariedade após tomar conhecimento das dificuldades que a menina passa devido a perda dos membros superiores e inferiores causados por um erro médico reconhecido, inclusive, pelo próprio Ministério da Saúde.
Dois casos diferentes e uma única conclusão se pode tirar disso: o Estado tem culpa no cartório, daí fazer, muitas vezes, vistas grossas e ouvidos de mercador aos inclementes pedidos dos cidadãos para a melhoria de condições nos hospitais.
Sindicato dos Médicos aponta falhas do Executivo
O presidente do Sindicato dos Médicos de Angola, Adriano Manuel, sem se debruçar sobre o caso mais recente da criança que faleceu a porta do hospital, cujo processo ainda não teve desfecho por estar a ser alvo de investigação por parte daquela comissão que não consegue precisar quantos casos vão a julgamento que, verdade seja dita, maior parte deles deveriam culminar em criminalização, sem querer ilibar os colegas, referiu que, em função desse caso, hoje se está apenas a olhar para a “ponta do iceberg”, enquanto a dimensão do problema é maior.
“Sem querer menosprezar a morte dessa criança e retirar a eventual culpa aos meus colegas, hoje, por exemplo, estamos todos a falar do Hospital Pediátrico devido a esse caso. Mas já nos perguntámos quantas crianças morrem no País? Quantas crianças morreram de raiva porque o País não tinha medicamento ou vacinas? Quem foi responsabilizado?”, questionou, deixando os decisores e os cidadãos tirarem as suas próprias ilações.
O responsável lembrou que quem compra medicamentos no País é o Estado e quando falta determinado tipo de medicamento, os pacientes morrem, mas o Estado nunca foi responsabilizado.
“Quer dizer que nós estamos apenas a olhar para a ‘ponta do iceberg’ e não para outros factores que influenciam negativamente, para que tenhamos o Sistema de Saúde como esse”, sustentou.
Trazendo números, o médico Adriano Manuel, que já enfrentou vários processos por denunciar a falta de condições de trabalho e as mortes nos hospitais, revelou que, em Angola, todos os dias morre, pelo menos, uma criança vítima de raiva.
“Todos os dias, em Angola, morre uma criança vítima de raiva, porque não há medicamentos ou porque não vacinaram os cães. E essa responsabilidade é do Estado. Mas será que o Estado costuma ser responsabilizado?”, questionou.
Jurista apela à responsabilização partilhada
Para o jurista Magalhães de Brito Manuel, é bastante preocupante a ocorrência de casos de negligência médica em Angola, tendo em conta as somas avultadas de dinheiro que o Estado gasta na construção de infra-estruturas hospitalares. Na sua visão, esse problema decorre das fragilidades que o nosso Sistema de Saúde apresenta.
“A cadeia que compõe a rede hospitalar não é completa. Se num momento há o enfermeiro, noutro já não tens médico e, se tiveres os dois, não tens medicamentos nos hospitais ou até uma ambulância”, notou.
O especialista em matéria processual penal alerta que muitas comissões de inquérito criadas em Angola não têm tido eficácia, uma vez que certos médicos envolvidos não chegam a ser responsabilizados de forma exemplar, de modo a desincentivar os demais actores a incorrerem em casos de negligência.
“Sobre essa matéria, face à importância do bem vida que o médico jurou defender, a sanção seria a expulsão e, consequentemente, a cassação da carteira profissional, além de outras formas de responsabilização, como a criminal”.
Nestas situações, Magalhães de Brito sublinha que a responsabilização deve sempre ser individual e partilhada. “Individual para aquele agente que, na ocorrência, tinha o dever de agir e por omissão não agiu, e partilhada nas situações em que a culpa pela negligência não dependia apenas do agente em serviço, mas também do sistema que não criou as condições necessárias para o médico desempenhar as suas funções condignamente. Aqui, estaríamos diante de uma responsabilização política, no caso a demissão da ministra ou, no mínimo, do secretário de Estado da Área Hospitalar”, sustenta. Em gesto de conclusão, adverte que a falta de condições de trabalho para os médicos e a falta de humanização dos médicos e enfermeiros têm contribuído bastante, mas não justificam, pois o médico fez o juramento de Hipócrates, que o obriga a salvar vidas.
“Ademais, o artigo 30.º da Constituição garante que o Estado protege e respeita a vida. E o médico no exercício das suas funções está a representar o Estado, por isso tem a obrigação de defender e de salvar vidas”.
Já o artigo 34.º do Código Deontológico e de Ética Médica obriga o médico no dever de guardar respeito pela vida desde o seu nascimento, cujo incumprimento tem como sanção a expulsão, nos termos do mesmo normativo.
O caso do Hospital ‘David Bernardino’
A morte do mais novo gerou comoção social, após denúncia dos pais de que houve negligência médica. A criança deu entrada às 23 horas do dia 1 de Janeiro e, com base nos depoimentos dos progenitores, só foi atendida às 01h38m, depois de chagar à unidade hospitalar, tendo acabado por falecer às 6 horas e 40 minutos do dia 2. “Num caso de emergência grave, os protocolos recomendam o atendimento imediato”, disse.
Como resultado, 25 funcionários, entre médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, bem como três integrantes da equipa de segurança privada, foram suspensos, por suspeita de envolvimento no caso. Face a isso, uma equipa foi indicada pelo Ministério da Saúde para o esclarecimento e apuramento das infracções, cuja investigação conta com membros da área da Saúde, do Serviço de Investigação Criminal (SIC), da direcção do hospital, do Serviço de Humanização do Ministério e da Direcção da Inspecção da Saúde.
Casos ocorrem ‘em todo’ o País
Em Setembro de 2024, por exemplo, a morte de um médico gerou indignação total em Cabinda. José Manuel, de 45 anos, padecia de um cancro. Dias antes de falecer, recebeu uma notificação do Hospital Geral de Cabinda, informando-lhe que tinha uma consulta marcada para uma data fora do dia esperado.
Dias passaram, e o médico veio a falecer, o que indignou a família. “Os médicos orientaram que ele fosse fazer exame no Hospital Geral, mas, posto na unidade, estenderam a data. Se um médico foi tratado dessa maneira, imagine como são tratadas outras pessoas, lamentou Paulo, um dos irmãos do falecido.
Moxico entra nas estatísticas
A família de uma paciente de 53 anos, que morreu no Hospital Geral do Moxico (HGM), em Abril de 2024, por alegada falta de sangue na instituição, acusou os médicos em serviço de crime de negligência médica.
A direcção do hospitalar mandou instaurar um inquérito para se apurar se houve ou não negligência médica, com vista a responsabilizar a equipa em serviço. Segundo o filho da vítima, Felizardo Alione, a equipa médica em serviço teria solicitado à família doadores externos para a transfusão de sangue, mas, quatro horas depois, viria a acabar por morrer. A família culpou a equipa médica, por supostamente não usar o sangue conservado no banco de sangue. Como resultado, o inquérito deu em nada e a culpa, novamente, morreu solteira e uma família ficou privada do convívio da sua matriarca para sempre.
Em face desse estado de coisas é necessário que o Estado tenha uma actuação enérgica, pois não basta punir os médicos ou enfermeiros, que estão abaixo da cadeia alimentar. É necessário o exemplo vir de cima, com a queda e responsabilização de entidades de topo para levar avante p slogan do Presidente João Lourenço, segundo o qual: "ninguém é tão rico que não pode ser punido e ninguém é tão pobre que não pode ser defendido".